Por Sandro Moraes
Tido como um dos grandes
teólogos da atualidade, Augustus Nicodemus esteve em São Luís neste fim de
semana por ocasião das celebrações de aniversário de 50 anos de uma igreja
presbiteriana na capital maranhense. Já suspeitava que ele aproveitaria o
evento para mais uma promoção da teologia calvinista como tem sido freqüente
nos últimos anos. Suspeita confirmada: Nicodemus utilizou Efésios 1.3-14 para
apregoar que a eleição e a predestinação divinas se baseiam na própria vontade
soberana do Altíssimo, na perspectiva do determinismo duro que caracteriza os
seguidores do reformador protestante João Calvino (1509-1564).
Entre os pontos fortes da
pregação, a excelente organização do conteúdo como é característica exemplar na
cultura dos chamados reformados, com informações do contexto histórico em que o
livro de Efésios foi escrito. Uma apresentação com começo meio e fim, com
conexões lógicas entre as diferentes partes da homilia. Entre os aspectos que,
pessoalmente, considero negativo, uma certa frieza por parte do Dr. Nicodemus
em relação ao público. Ao lembrar-me do carisma de outro renomado teólogo que
já esteve algumas vezes em São Luís, Luiz Sayão, foi inevitável uma comparação.
Não que eu exija que Nicodemus apresente carisma na mesma proporção daquele, o
que seria absurdo, dadas as diferenças óbvias de personalidade, entretanto uma
simpatia mínima além das formalidades básicas que um evento como esse exige faria
bem. Quando um palestrante é convidado a participar de eventos comemorativos,
congressos ou seminários, falar bem da cidade e dos anfitriões é uma atitude
básica de retribuição. Pelo menos no culto de abertura das comemorações que acompanhei
isto esteve ausente no teólogo. Pelo menos ele fez uma brincadeira interessante
no início da pregação: “Paz do Senhor, e aos presbiterianos boa noite!” disse o
pregador que arrancou risos do público, lembrando o velho Caio Fábio, que fazia
um gracejo semelhante nos anos 90.
Indo ao conteúdo da
mensagem, não tenho tempo para tratar de tudo o que foi abordado; exigiria
tempo e um longo texto (não tenho as duas coisas à disposição). Para uma
abordagem mais prática e facilitadora da leitura do internauta, seleciono
alguns pontos.
Augustus Nicodemus utilizou
antigos jargões e ideias prontas do calvinismo em toda a sua pregação. Nada de
novo. Ele apelou, numa rápida citação sem aprofundamento, para as causas
secundárias para tirar a responsabilidade moral de Deus pela existência do mal.
O antigo calcanhar de Aquiles do calvinismo permanece como tal. O esforço para
distinguir causas primárias e secundárias continua inescapável e miseravelmente
a falhar na ajuda ao calvinista para solucionar o problema de Deus e do mal.
Mesmo que Deus, para cumprir seus propósitos preordenados e tornar certo tudo o
que acontece, utilize causas secundárias, Ele ainda é a causa primária ou
última de toda a realidade, incluindo a prática do pecado. Todos os eventos
humanos têm origem em Deus que planeja, preordena e torna certo tudo o que
existe e acontece segundo o determinismo predestinalista. Isso nos levaria à
conclusão de que Jesus “errou” ao afirmar que o Diabo veio para matar, roubar e
destruir. Uma vez que a responsabilidade última reside na causa última, Deus,
sim, foi quem veio para matar, roubar e destruir. Não existindo liberdade
libertária, o poder de escolha contrária, rejeitada pelo determinismo, e que
atribui à criatura a responsabilidade pelo pecado que comete, cabe a ela
deixar-se marionetar pelo Criador e fazer tudo o que este predeterminou, posto
que a marionete não poderia fazer nada diferente do que foi preordenada a fazer.
Louvor ou condenação ficariam sem sentido neste mundo, bem como culpa ou
inocência. Todos são inocentes e obedientes, sendo o ser divino e soberano o
único responsável por tudo o que é pecaminoso e mal já que ele é a causa primária
ou última da realidade.
Em outro momento o teólogo teceu
o conhecido retrato da salvação que contém uma humanidade espiritualmente cega
em direção ao abismo. Deus, para expressar a sua “bondade”, o seu “amor”, decide
selecionar alguns humanos e, mediante a graça irresistível, retira deles a
cegueira, impedindo-os de cair no precipício. Pergunta: como um Deus que decide
salvar apenas alguns poderia ser o Deus cujas Escrituras atestam que amou o
mundo, quer dizer, a totalidade da raça humana, todos sem exceção? (Jo 3.16); Como
um Deus poderia ser todo amoroso se decidiu salvar milhões, porém deixando
bilhões de suas criaturas para sofrer a eterna danação quando poderia salvar a
todos? Como essa divindade poderia pré-selecionar, decretar, predestinar uma
minoria para percorrer o caminho estreito que conduz a porta estreita da
salvação sem ser caprichoso, arbitrário, ou sem fazer acepção de pessoas, o que
é contrário ao ensino da Escritura? (Rm 2.11).
Embora seja verdadeiro que
todos mereçam o inferno, como um Deus que decide escolher alguns homens de uma
imensa massa para salvar deixando os demais para a condenação poderia ser
Aquele que o NT declara que “deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem
ao conhecimento da verdade?” (1Tm 2.4); como Ele poderia ser o “Deus vivo,
salvador de todos os homens?” (1Tm 4.9); como tal ser divino poderia ser aquele
cuja graça “se manifestou salvadora a todos os homens?” (Tt 2.11); de que modo
Ele poderia não querer “que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao
arrependimento? (2Pe 3.9); Essa divindade seria a que pergunta: “Acaso tenho eu
prazer na morte do perverso? – diz o Senhor Deus”; E Ele mesmo responde: “não
desejo eu, antes, que ele se converta dos seus caminhos e viva” (Ez 18.23;
33.11).
Quanto à interpretação de
Efésios, o entendimento arminiano clássico de que a eleição e a predestinação
são incondicionais da perspectiva de Deus que escolhe seu povo, mas
condicionais a partir da ótica do homem, exigindo deste a fé, é mais lógico e
harmoniza diferentes contextos bíblicos que numa leitura descuidada podem
parecer contraditórios. Eis a síntese soteriológica dos que apóiam Jacó Armínio
(1560-1609): A soberania de Deus não elimina as escolhas libertárias de suas
criaturas, senda estas responsáveis por suas decisões, inclusive a de rejeitar
ou receber a Cristo; a eleição e a predestinação se baseiam no conhecimento de
Deus sobre aqueles que escolheriam crer e receber o Redentor (1Pe 1.2); Eleição
e predestinação são baseadas também no caráter do Deus todo amoroso, sendo essa
interpretação também consistente com a presciência divina; não obstante o
pecador caído não ser capaz de exercitar a fé salvífica, uma vez que a graça de
Deus é dada, é possível ao degenerado exercitar ou recusar o exercício da fé
redentora.
Em outro momento da pregação
Nicodemus fez uso da famosa frase paulina em Romanos 9.20 para “esmagar” o
questionamento daquele que considera a eleição e a predestinação divinas
arbitrárias, e não soberanas conforme afirma a cosmovisão calvinista: “Quem és
tu, ó homem, para discutires com Deus?” A interpretação do arminianismo para o
contexto dessa passagem é que o capítulo 9 de Romanos trata das escolhas
soberanas de Deus, mas elas não se referem ao céu ou inferno, mas a propósitos
de Deus realizados na terra, a indivíduos e povos escolhidos para missões
específicas, afinal Deus tinha que escolher o seu “time”. As ilustrações de
Esaú e Jacó, Moisés e Faraó deixam isso claro, mormente se foram comparadas com
seus contextos históricos originais. Esaú e Jacó nem poderiam se referir a
indivíduos posto que na história “o mais velho” (Rm 9.12) não se tornou servo
do “mais moço”, como o texto diz. A passagem não se relaciona a indivíduos
escolhidos para a salvação eterna, mas aos descendentes de Esaú e Jacó, a povos.
Seres pensantes exigem
lógica e razão, e se a lógica e a racionalidade têm origem em Deus, a Escritura
cuja redação ele inspirou não poderia ser destituída dessas virtudes. A
interpretação que o calvinismo dá a passagens como de Romanos 9 e Efésios 1 fazem
com que esses textos entrem em guerra civil com os versículos que tratam de
Deus como amando a todos os homens, desejando a salvação de todos. O
arminianismo é superior porque harmoniza esses diferentes registros da Bíblia. Não
se deve fechar uma interpretação de algumas poucas passagens, eliminando o
significado claro de outras, como o calvinismo faz no tocante às questões
soteriológicas. Nem a interpretação de que os textos que falam de todos não se
referem a todas as pessoas sem exceção, mas a todos os tipos de pessoas, ajuda
o calvinista. Isso não passa de desonestidade intelectual e um erro histórico
de adaptação de textos bíblicos a uma corrente teológica e um proibido
acréscimo às Escrituras (Ap 22.18).
Augustus Nicodemus também afirmou
no final da sua pregação como o indivíduo inquieto para saber se é eleito
poderia ter tal convicção: “O fato de você querer saber isso já é uma evidência
de que você é um eleito; não eleitos não teriam preocupações como essa!”
responderia o famoso teólogo ao interlocutor em angústia. Não pude escapar da
tentação de concluir quão subjetivo poderia ser essa conclusão; também me
questionei se essa sugestão não poderia levar ao autoengano ou falsas
esperanças. Não pude também deixar de indagar como a mensagem de Nicodemus
poderia ser considerada Boas Novas para o incrédulo. Afinal, pode muito bem levar
à conclusão de que a salvação é uma questão de sorte.
O arminianismo clássico é o
único sistema soteriológico que mantém a boa reputação de Deus ao preservar seu
caráter amoroso, sua bondade, justiça e real soberania. O sistema rival torna
Deus o autor do mal, uma divindade arbitrária e caprichosa que veio para matar,
roubar e destruir, indistinguível do Diabo, malgrado este retrato não seja o
tencionado pelo calvinismo e calvinistas (que estão entre os melhores cristãos
que conheço), e a despeito de reconhecerem isto ou não.
Terminada sua pregação
seguida de uma oração, Augustus Nicodemus entregou o microfone ao pastor titular
da igreja aniversariante, de modo tão frio, seco e formalístico como quando
começou. Para um preletor tão conhecido um pouco de carisma não faria mal.
Um comentário:
Sandro, tentei fazer contato com você pelo e-mail indicado na área de contato do blog e o e-mail voltou. Preciso fazer contato com você.
Se possível, me envia um e-mail para cely.gama@logos-ma.com.br
Aguardo retorno.
Cely Gama
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