21 maio, 2010

O DEUS DO APARTHEID

Como é possível Deus amar a todos e escolher alguns para salvar?

Parece uma pergunta absurda? Mas traduz precisamente uma das implicações de uma (in)compreensão das Escrituras de uma corrente teológica que voltou com ímpeto nos últimos tempos nos EUA para ser o centro de ardorosos ou mesmo odiosos debates: a predestinação calvinista. 

Vociferam os proponentes desse movimento chamado calvinismo que Deus, antes da existência dos seres humanos ou mesmo do universo, predestinou alguns para a vida eterna, tendo excluído os demais, os destinando à perdição eterna: uma imortalidade cujo principal sofrimento reside na própria separação do criador. A base para a eleição dos favoritos é a soberania divina, que jamais pode ser questionada, apenas aceita rigorosa e cegamente. Afinal, pode o vaso questionar o Oleiro? Até mesmo o mais fervoroso ateu consideraria tal proposição uma incoerência filosófica, tendo em vista a idéia de um Deus justo, amoroso e perfeito; uma incompatibilidade conceitual com um Deus que não faz acepção de pessoas, conforme propagado pelos cristãos e de acordo com a própria descrição do caráter dEle nas Escrituras. Os calvinistas costumeiramente defendem de modo ferrenho e até extremado suas convicções. Sofrem do mesmo mal que costuma acometer os marxistas e esquerdistas: pensam ser as pessoas mais inteligentes do mundo.
  

Entretanto, um olhar desapegado das tradições religiosas produtoras de engessamento e anulação do pensamento crítico perceberá que aceitar o posicionamento calvinista implica em reconhecer que a Bíblia é contraditória e, portanto indigna de crédito. Nunca considerei a idéia de um Deus que já decidiu quem irá para o céu e quem irá para o inferno como sendo bíblica, mesmo no início da minha caminhada cristã. Com o perpassar dos anos e o aguçamento das percepções das revelações escriturísticas, discerni que a predestinação calvinista não é apenas incoerente, é antibíblica. 

A dificuldade básica em defender tal posicionamento está no fato de que Cristo morreu por todos os homens exatamente porque Deus ama a todos os homens. Vejamos o que a Bíblia diz com indiscutível clareza:

Jo 3.16: “Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna.”

1 Tm 2.4: “que deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade.”

1 Tm 2.6: “o qual se entregou a si mesmo como resgate por todos. Esse foi o testemunho dado em seu próprio tempo.”

Tt 2.11: “Porque a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens.”

2 Pe 3.9: “O Senhor não demora em cumprir a sua promessa, como julgam alguns. Ao contrário, ele é paciente com vocês não querendo que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento.”

1 Jo 2.2: “Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos pecados de todo o mundo.”

1 Jo 4.14: “E vimos e testemunhamos que o Pai enviou seu Filho para ser o Salvador do mundo.”


Dificuldades sem solução

Diante dos versículos postos fica uma grande dificuldade para os predestinistas fatalistas: Como Deus poderia amar o mundo inteiro, todos os homens, e como prova desse amor pré-seleciona a maioria dos que ama para enviá-los ao inferno?

Como o apóstolo Pedro poderia escrever que o Senhor não quer que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento, se Ele já havia predestinado e, portanto, pré-programado a maioria para não se arrepender e perecer? 

Como Deus poderia inspirar Tiago a exortar-nos a não fazermos acepção de pessoas, se o próprio Deus elegeu os seus favoritos antes da existência de qualquer um deles?

Mais: como Deus poderia exigir que nós amássemos os nossos inimigos se nem Ele mesmo foi capaz de amar os inimigos que Ele próprio criou?

Como os apóstolos Pedro, Paulo e João poderiam afirmar que Deus não faz distinção, amando todas as pessoas, se só escolheu alguns para salvar? Não seria o caso de chamar os apóstolos de mentirosos?

Se Deus já decidiu quem será salvo, para quê pregar o evangelho a todo o mundo como o próprio Senhor Jesus ensinou, se a maior parcela das pessoas foi predestinada a negar o evangelho?

Tentar responder a esses questionamentos com coerência lógica harmonizada ao caráter de Deus é um desafio impossível de ser superado. Resta apelar para o argumento do mistério.

E se Deus ama a todos, por que, ao invés de escolher alguns para salvar, não escolheu a todos? Não seria tal gesto mais condizente com um Deus de amor que não discrimina ninguém?

Até os universalistas, que crêem que todos serão salvos, são mais coerentes.

O erro grosseiro dos calvinistas é atribuir à soberania divina a base da salvação. A salvação fundamenta-se no amor de Deus. Só o amor divino explica a dádiva da salvação imerecida concedida ao homem. Fosse a soberania a base salvífica restaria a todos nós o merecido inferno, pois é para lá que todos nós de fato deveríamos ir meritoriamente por conta dos nossos infinitos crimes contra o Criador e contra a própria humanidade.


Por que nem todos são salvos

Mas se a salvação é para todos os homens, se o sacrifício de Cristo na cruz foi em benefício de toda a humanidade, então por que nem todos são salvos? Só resta uma alternativa: a possibilidade do homem rejeitar tão grande amor e tão grande salvação a partir de sua própria vontade.

Ninguém vai para o inferno porque Deus quis. Jesus disse que o inferno foi criado para o diabo e seus anjos e daí se infere que o homem é um intruso e não era projeto original de Deus que seres humanos fossem para lá. Do contrário Jesus teria dito que o inferno foi criado para o diabo, seus anjos e para os seres humanos que Deus quis enviar para a perdição eterna. 

A palavra de Deus garante, como mostram os versículos anteriormente mencionados, que Deus ama a todos os homens e oferece a sua salvação graciosamente a todos. Deus usará todos os recursos para que os homens creiam no evangelho, na salvação exclusiva em Cristo. Os que não forem salvos desprezaram o evangelho, rejeitaram a salvação oferecida por Deus a todas as pessoas. 

Concordo com o apologista Dave Hunt ao afirmar que a sugestão de que Deus não quer que toda a humanidade seja salva é uma difamação do caráter dEle.

“Sugerir que Deus não quer que toda a humanidade seja salva é uma difamação do seu caráter, e a Bíblia seria contraditória! Como poderia ser que Deus, que diz que devemos amar nossos inimigos, não amasse os seus? É inconcebível que Deus tenha o desejo de enviar alguém que Ele realmente ama para o inferno. Na verdade, muitas pessoas vão para lá pelo fato de rejeitarem a salvação que Deus, amorosamente, nos ofereceu por meio de sua graça.” (Dave Hunt, Em Defesa da Fé Cristã, pg 304) 

Veja como a Bíblia é clara ao afirmar que é responsabilidade do homem receber ou rejeitar a salvação de Deus. Preste atenção nas palavras destacadas: 

(Rm 1.28-32)

“Além do mais, visto que desprezaram o conhecimento de Deus, ele os entregou a uma disposição mental reprovável, para praticarem o que não deviam.
Tornaram-se cheios de toda sorte de injustiça, maldade, ganância e depravação. Estão cheios de inveja, homicídio, rivalidades, engano e malícia. São bisbilhoteiros,
caluniadores, inimigos de Deus, insolentes, arrogantes e presunçosos; inventam maneiras de praticar o mal; desobedecem a seus pais; são insensatos, desleais, sem amor pela família, implacáveis.
Embora conheçam o justo decreto de Deus, de que as pessoas que praticam tais coisas merecem a morte, não somente continuam a praticá-las, mas também aprovam aqueles que as praticam.” 


(Rm 2.4-11)

“Ou será que você despreza as riquezas da sua bondade, tolerância e paciência, não reconhecendo que a bondade de Deus o leva ao arrependimento?
Contudo, por causa da sua teimosia e do seu coração obstinado, você está acumulando ira contra si mesmo, para o dia da ira de Deus, quando se revelará o seu justo julgamento.
Deus "retribuirá a cada um conforme o seu procedimento."
Ele dará vida eterna aos que, persistindo em fazer o bem, buscam glória, honra e imortalidade.
Mas haverá ira e indignação para os que são egoístas, que rejeitam a verdade e seguem a injustiça.
Haverá tribulação e angústia para todo ser humano que pratica o mal: primeiro para o judeu, depois para o grego; mas glória, honra e paz para todo o que pratica o bem: primeiro para o judeu, depois para o grego. Pois em Deus não há parcialidade.”

O texto é claro e objetivo: por egoísmo, a maioria dos homens despreza a bondade de Deus, rejeita a verdade e segue a injustiça. Deus fará um julgamento justo porque não faz acepção de pessoas.


Soberania ou Tirania?

Um problema grave dos calvinistas é confundir soberania com tirania. Um Deus que escolhe quem condenar e quem salvar antes que qualquer pessoa viesse à existência não poderia ter critérios de julgamento a não ser a arbitrariedade e, portanto não poderia ser justo. Tal Deus, ou melhor, deus, seria um tirano, pior que qualquer déspota que já passou por esta terra. Tal deus não seria um Deus de amor e sim de ódio e preconceito, um ditador divino merecedor de todo o nosso desprezo. O apóstolo Paulo declarou que as exigências da Lei estão gravadas em nosso coração, e afirmou: “Disso dão testemunho também a sua consciência e os pensamentos deles, ora acusando-os, ora defendendo-os” (Rm 2.15). Deus gravou em nossa consciência a noção do bem e do mal, de certo e errado. Um Deus reto e justo não poderia chamar de indesculpável alguém que foi predestinado para rejeitá-lO. Ao contrário, Deus é que seria indesculpável, visto que seria o verdadeiro responsável, o real culpado pelo pecado da rejeição da verdade daquele que foi pré-programado para isto. Lamentavelmente é isso que afirma o hipercalvinismo: que Deus pré-determinou não apenas quem não será alcançado pela graça irresistível, como também o pecado do não arrependimento e todos os pecados que acompanham um ser não regenerado pelo Espírito de Deus. Que absurdo. Religião realmente mata! 


Estranho deus

Fico a imaginar um cenário hipotético no qual eu seria um não-salvo. Diante do tribunal de Deus vejo minha sentença de condenação ao inferno. Fico impossibilitado de perguntar: “Deus, eu nem pedi para nascer e vim ao mundo pré-condenado a perdição eterna. Tu decidiste este desígnio em teu coração antes mesmo que eu ou qualquer outra pessoa nascesse e ainda assim estava determinado por ti que eu viria ao mundo para morrer e ir para o inferno". Eu não poderia fazer tal questionamento a esse 'estranho deus' porque ele é “soberano”, “justo” e “me ama”. Que prova de amor!!! 


Idolatrias

Cristo é a verdade que liberta, inclusive das idolatrias religiosas. Apego ferrenho a correntes teológicas e filosóficas é idolatria, na medida em que elas nos fazem levantar bandeiras que não são o evangelho e ocasionam rupturas onde deveria haver unidade. Conferir infalibilidade a homens, como o papa do protestantismo João Calvino, ou a Armínio é pecado. Armínio errou ao afirmar que pessoas podem perder a salvação como se esta fosse baseada no esforço e mérito humanos. Calvino por seu turno não foi um papa infalível ao afirmar que Deus já definiu quem vai para o céu e quem irá para o inferno. Herege infalível seria uma expressão mais adequada. Nossa referência é Cristo!


Antropocentrismo

Os expoentes do calvinismo costumam afirmar que a idéia da escolha do homem em receber ou rejeitar o chamado de Deus é corolário do humanismo, antropocentrismo e teologias liberais.  Acho curioso e até engraçado essas afirmações! O que há de mais antropocêntrico e humanístico que um deus feito à imagem e semelhança de Hitler que habita no meio dos seus favoritos? O deus que conheço que exercita seu favoritismo tendo misericórdia apenas com seus adoradores excluindo os demais como idólatras merecedores de emboscadas e da morte é Alá.    

Intitulei este artigo como “O Deus do Apartheid”, porque a noção de que Deus elege seus favoritos é mais um corolário de antigos empenhos humanos de fazer parte de uma classe especial e privilegiada para dominar o igual. Na política e religião praticamente de todas as culturas em todas as épocas observamos este fenômeno: classe especial dos ungidos, white supremacy (supremacia branca), Ku Klux Klan, raça ariana, os brâmanes, iluminados, gurus, templários, mestres ascendidos, etc. Desejar a superioridade sobre o outro é um mal praticamente onipresente na história. Fiquei feliz ao saber que nos EUA importantes livros estão sendo publicados para combater as idéias maléficas que querem fazer de Deus um promotor de segregação, de um "apartheid espiritual". Espero que o combate e a rejeição a tais idéias se intensifiquem por aqui. 

Dizem que o antagonismo entre a predestinação e a livre escolha é o embate entre o calvinismo e o arminianismo, visão míope e estreita que só tira o foco do que é realmente importante. Muito além disso, é a diferença entre a verdade das Escrituras e as elucubrações insanas, as invenções e heresias difamatórias deturpadoras do caráter amoroso de Deus. 


Por Sandro Moraes


São Luís-MA/Brasil

Próximo artigo: pré-ciência e predestinação. 

2 comentários:

NICODEMOS disse...

Paz seja contigo
Muito boa exposiçãos acerca da eleição da Graça, da Salvação, da Soberania e do Amor de Deus. Muitas vezes pessoas ficam em dúvidas sobre o comportamente e pensamento de Deus acerca delas, e não são capazes de discernir acerca de tão grande amor e da grande escolha que nós temos de fazer, ester livre-arbítrio não pode ser ignorado por nós. Uma vez que o pecado causava separação enre nós e Deus o perfeito savcrifício de Cristo nos tornou aceitaveis deiante de Deus. se rejeitarmos tal sacrifício, estamos a rejeitar o próprio Deus e declarando que não queremos ser salvos.

Permaneça na Graça e nela frutifique

Seja bem vindo em meu blog e se puder ser edificado na Palavra

atalaia do castelo.blogspot.com

Nicodemos

Sandro Moraes disse...

Oi, Nicodemos, PAZ! Obrigado pela visita ao meu blog, vc será sempre bem vindo. Gostei muito do seu blog. Li os artigos "propaganda política na igreja" e "igreja evangélica versus igreja católica" em que vc observa muitas semelhanças entre ambas. Deixei um comentário no último texto. O fato Nicodemos é que temos que lamentar que a igreja de Cristo cujas "portas do inferno não prevalecerão contra ela" existe, é fácil de ser identificada para quem possui discernimento, mas está difícil de ser encontrada. Há uma profusão de igrejas espetáculo, igrejas de "milagres" que vão na contramão de Cristo ao dizer a quem recebeu milagres "não diga a ninguém"!, igrejas históricas e/ou reformadas caindo aos pedaços, igrejas que pregam a aceitação do ego, e não a negação dele. Enfim, está difícil. Vivemos os tempos da igreja de Laodicéia.

Já estou te seguindo e acrescentei o seu blog na minha lista de blogs, já que o seu trabalho tem muita qualidade. Se vc puder fazer o mesmo, divulgando o meu, agradeço. Te convido também a ser meu seguidor. Deus abençoe, abraço!