Por Sandro Moraes
O apóstolo Paulo escreveu:
“Porque pela graça vocês são salvos, mediante a fé; e isto não vem de vocês, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie” (Efésios 2.8,9).
“Ele nos salvou, não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo a sua
misericórdia” (Tito 3.5).
“Concluímos, pois, que o ser humano é justificado pela fé, independentemente das obras da lei” (Romanos 3.28).
Tiago registrou no livro que leva o seu
nome:
“Por acaso não foi pelas obras que Abraão, o nosso pai, foi justificado, quando ofereceu o seu filho Isaque sobre o altar?” (Tiago 2.21).
“Assim, vocês percebem que uma pessoa é justificada pelas obras e
não somente pela fé” (Tiago 2.24).
Estamos lendo corretamente as passagens acima? O irmão do Senhor Jesus está em tensão com o mais relevante escritor do Novo Testamento? Estaria o apóstolo Paulo ensinando que somos salvos por Deus mediante a fé, enquanto Tiago afirma o oposto? O ensino paulino é o de que o crente é justificado (declarado justo) diante de Deus pela fé, ao passo que Tiago declara a justificação pelas obras? Não seria este o exemplo de dois ensinos opostos e irreconciliáveis demonstrando o quanto a Bíblia pode estar em gritante contradição?
Uma
leitura apressada poderia concluir haver oposição nos ensinos de Paulo e Tiago
no que tange a salvação do homem, entretanto, um estudo cauteloso e aprofundado
corrige o que, no fim das contas, prova-se como uma interpretação ruim das
Escrituras Sagradas, um esforço de interpretação ou leitura superficial que não
leva em conta os contextos.
1. A
universal religião do esforço próprio
A
ideia de que o ser humano é justificado e salvo por Deus pelas boas obras
permeia todas as religiões e seitas, antigas ou contemporâneas. Há religiosos
que dizem que “fora da igreja não há salvação”, ou “fora da caridade ninguém
será salvo”. Judaizantes declaram que “sem o cumprimento da lei ninguém se
salvará”; para os sabatistas só serão salvos os que guardam o sábado.
Os
mórmons utilizam Tiago 2.21 como base para o argumento da necessidade das obras
para o alcance da salvação. O romanismo faz o mesmo para provar a justificação
final dos fiéis por Deus mediante as boas obras.
Esses
diferentes empreendimentos religiosos têm em comum a crença na essencialidade
do esforço humano para a conquista do céu. O cristianismo verdadeiro que crê na
Bíblia como Palavra de Deus é o único a estar em conflito com a religião do
esforço próprio, fruto do orgulho e ilusão humana na capacidade de autossalvação.
Precisa
ficar claro que desde o início do Antigo Testamento a ideia de salvação pela fé
somente já estava presente. Muito poderia ser dito, mas ficaremos num exemplo. A
única aproximação com Deus aprovada por Ele mesmo foi dada em Êxodo 20.24-26. O
sacrifício de animais como substitutos para a expiação do pecador deveria ser
oferecido sobre um altar que poderia ser feito com pedras empilhadas; mas Deus
proibiu que as pedras fossem talhadas com ferramentas. O altar também não
poderia ser elevado para evitar a necessidade de subir os degraus para alcançá-lo.
A mensagem divina é explícita: nenhum esforço humano pode desempenhar um papel
na salvação. A salvação é inatingível ao pecador. Ela é dom de Deus, imerecido,
mas concedido graciosamente. O Novo Testamento corrobora, amplia e sistematiza
esse ensino.
Feitas
essas observações iniciais, chegou o momento de organizar o ensino paulino de
justificação pela fé e desfazer a má compreensão do ensino de Tiago sobre as
boas obras.
2. Paulo
ensina que Deus nos justifica por nossa fé em Cristo
“Sabendo, contudo, que o homem não é
justificado por obras da lei, e sim mediante a fé em Jesus Cristo, também temos
crido em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados pela fé em Cristo e não
por obras da lei, pois por obras da lei ninguém será justificado” (Gálatas 2.16).
Nesse
texto de Gálatas Paulo esclarece que a justificação vem após a fé salvífica em
Cristo e que somos justificados pela fé, não por obras. Em acréscimo, todo o
capítulo 4 de Romanos é uma defesa da justificação pela fé somente, excluindo-se
as obras. A mesma ideia está presente em outras passagens como Romanos 3.20,28,
Gálatas 3.11; 5.4 e Efésios 2.8,9.
3. Então,
o que Tiago quis dizer ao afirmar que somos justificados pelas obras?
Wayne
Grudem esclarece que em Tiago 2.24 o autor utiliza a palavra “justificado” com
um sentido diferente do uso de Paulo para a mesma palavra. A palavra grega
traduzida por “justificado” é dikaioo;
ela possui um leque de significados, e um deles é “declarar justo”; também pode
significar “demonstrar ou mostrar ser justo”. Grudem sugere que enquanto Paulo
faz uso do primeiro sentido, Tiago utiliza o segundo. O teólogo desenvolve o
seu raciocínio para explicar Tiago com base em Lucas 16.15, uma passagem que
mostra Jesus falando aos fariseus que eles se justificam a si mesmos aos olhos
dos homens. A ideia é que os religiosos tentam “mostrar ser justos” (sentido de
Tiago) aos olhos dos homens, qual seja, pelo o que é aparente à vista dos
outros, as obras.
4. Convergência
entre os ensinos de Paulo e Tiago
Com
base no que foi observado no parágrafo anterior, Paulo corretamente ensina que
o homem é justificado pela fé, ou seja, declarado justo (por Deus). Tiago, por
sua vez, ensina que o homem é justificado pelas obras, ou melhor, demonstra ser
justo por elas. Concluiu-se que eles não se contradizem, se complementam. Tiago
corretamente complementa o apóstolo Paulo.
5. Justificação
perante Deus e Justificação diante dos homens
Norman
Geisler observa que o apóstolo Paulo sempre falou mais frequentemente acerca da
justificação diante de Deus e Tiago escreve com alguma extensão a respeito da
justificação diante de um mundo observador. Tiago não fala da justificação
diante de Deus, como Paulo faz, mas da justificação diante das outras pessoas.
Tanto que Tiago realça que devemos “mostrar” a nossa fé (Tiago 2.18); e ela
deve ser vista pelos outros por meio de nossas “obras” (vv. 18-20). Tiago, em
adição, reconhece que Abraão foi justificado diante de Deus pela fé, e não
pelas obras. Veja:
“Abraão creu em Deus, e isso lhe
foi atribuído para justiça” (v. 23).
Quando Tiago acrescenta que Abraão foi “justificado
pelas obras” (v. 21), ele se referia ao ato de Abraão que podia ser visto (como
justo) pelos homens, no caso, o oferecimento de Isaque no altar (2.21-22). De
um modo ainda mais claro, Abraão foi justificado quando creu em Deus e a sua
crença (ou seja, a sua fé), foi evidenciada pelas obras quando ofereceu o seu
filho Isaque.
Paulo, prossegue Geisler, destaca a raiz
da justificação (a fé), ao passo que Tiago ressalta o fruto da justificação (as
obras).
A relação entre Paulo e Tiago sobre o
tema da justificação pode ser ilustrada do seguinte modo:
Paulo |
Tiago |
Justificação
perante Deus |
Justificação
diante dos homens |
A raiz
da justificação |
O fruto
da justificação |
Justificação
pela fé |
Justificação
da fé pelas obras |
A fé
como produtora de obras |
As obras
como prova de que há fé |
O ensino bíblico da justificação pela fé
pode ser sintetizado em Romanos 4.5; Tito 3.5 e Efésios 2.8,9.
6. A inutilidade das obras para a salvação
A leitura cuidadosa de Tiago com as devidas
conexões com os textos paulinos levam a inevitável conclusão de que Tiago não
preconiza as boas obras como requisito para a salvação, nem a primazia dos atos
sobre as convicções. Com efeito, ensina coisas relevantes para habitar a nossa
compreensão, para tornar mais aguda a nossa sensibilidade espiritual. Ele nos
revela que há dois tipos de fé – a legítima e consumada, que conduz ao correto
pensar e viver, e a ilegítima, fé sem obras, ou marcada pelas obras mortas.
Enquanto Paulo fala da inutilidade do esforço humano para alcançar a redenção,
Tiago versa sobre a inutilidade da fé ilegítima, estacionada no nível
intelectual, no assentimento que não produz o salto da incredulidade para a
genuína crença em Deus; uma fé deficiente e, portanto, nula e falsa. Até os
demônios possuem esse tipo de fé que não resulta em conversão (2.19).
A fé autêntica e correta de Abraão foi
comprovada pelos atos corretos. Abraão jamais teria oferecido o seu filho se
não tivesse confiado em Deus e no cumprimento da sua promessa.
Sim, o crente é justificado pela fé
verdadeira, e só é preciso a fé legítima para se obter a salvação. E a vida e comportamento
mostram se a fé é verdadeira ou não.
Cuidado com as falsas religiões da salvação pelas obras
A característica mais em evidência das religiões e seitas falsas, rotuladas de cristianismo ou não, é o princípio
antibíblico de se fazer alguma coisa para Deus, fazer algum sacrifício
para agradá-lo. A salvação que só pode vir de Deus, e que o homem não pode
conquistar, apenas receber como dom imerecido, foi consumada por Jesus Cristo
na cruz do calvário. Só é preciso crer nEle.
O recado da palavra de Deus é cristalino:
“Porque pela graça vocês são salvos, mediante a fé; e isto não vem de vocês, é
dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie” (Efésios 2:8,9).
Da perspectiva profética, os falsos ensinos das seitas e
religiões que contrariam o ensino bíblico da impotência do homem para se salvar
cumprem cabalmente profecias antigas. As mesmas passagens servem de alerta
contra a apostasia.
“Ora, o Espírito afirma expressamente
que, nos últimos tempos, alguns apostatarão da fé, por obedecerem a espíritos
enganadores e a ensinos de demônios, pela hipocrisia dos que falam mentiras e que têm a
consciência cauterizada” (1 Timóteo 4:1,2).
Concordamos com as palavras de Abraão de Almeida: “Quando se
faz obras por ser salvo, são obras vivas, de fé; mas quando se faz obras para
ser salvo, são obras mortas, da carne”.
O crente pratica boas obras, não para ser salvo, mas por
ser salvo.
Para arrematar, a reflexão de John Wesley sobre as
realidades da fé é pertinente.
“Quando afirmamos que a salvação é pela fé, queremos dizer que o perdão, como a salvação principiada, é recebido por fé que produz obras; que a santidade, como a salvação contínua, é a fé operada por amor; e que o céu, como salvação completa, é a recompensa desta fé.
São Luís, 14 de novembro de 2022.
BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA
201 Respostas para o seu enriquecimento espiritual e cultural: Abraão de Almeida.
Manual popular de dúvidas, enigmas e contradições da Bíblia: Norman Geisler; Thomas Howe.
Resposta às Seitas: Norman L. Geisler; Ron Rhodes.
Teologia Sistemática ao Alcance de Todos: Wayne Grudem.
Um comentário:
Esse estudo tirou dúvidas que eu tinha há muitos anos. Marcia
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