01 março, 2011

Foram os anjos dotados de livre escolha?

Por Sandro Moraes

E aos anjos que não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria habitação, reservou na escuridão e em prisões eternas até ao juízo daquele grande dia (Judas 6).

Um dos programas radiofônicos mais importantes na capital maranhense, o "Na roda dos esclarecedores" versa sobre uma série de temas bíblicos e assuntos relevantes à igreja, família e sociedade. É comandado magistralmente pelo pastor e radialista Wellington Aquino. Sinto falta quando fico ausente dos debates por um tempo dilatado em razão das minhas atividades profissionais.

Num debate recente sobre "anjos" o posicionamento de um dos debatedores chamou a minha atenção. Apologista de tradições calvinistas ele afirmou que nem todos os anjos foram dotados de livre-arbítrio ao serem criados por Deus, afirmando em seguida que somente possuíam esse atributo os seres angelicais que pecaram. Disse também que se existissem anjos com livre-arbítrio hoje haveria o risco de muitos deles caírem em rebelião. Um ministro batista retrucou dizendo que a Bíblia não referenda esse posicionamento. Em resposta, o calvinista disse que as Escrituras de fato não atestam isto, mas também não negam. Reconheço que o proponente da tradição reformada é possuidor de uma inteligência e repertório teórico admiráveis que, todavia, são paradoxalmente solapados por um erro recorrente durante a construção de esquemas hermenêuticos: o uso de lentes limitadoras e redutoras do calvinismo.  

Para mim é um exercício intelectual prazeroso  analisar as implicações de postulados teológicos antes de adotá-los ou não. Guardo uma forte convicção de que precisamos ter senso crítico para não sair "engolindo" todo tipo de esquemas teológicos mesmo que sejam conservadores ou tradicionalmente rotulados de ortodoxos.   

A questão que quero analisar é o postulado de que somente os anjos que caíram eram dotados de livre-arbítrio.

Incoerências sem solução

A (in)compreensão de que só os anjos sem livre arbítrio não caíram guarda uma incoerência para a qual não há solução: a de que apenas seres pré-programados por Deus seriam capazes de amá-lo e adorá-lo. Por livre vontade e desejo espontâneo ninguém poderia amar e servir ao Criador. Somos inclinados a concluir que seria “sem graça” para o próprio Deus receber tanta adoração artificial, já que nenhuma é espontaneamente produzida em corações desejosos por se entregar com inteireza a Ele em amor. Amor e adoração pré-programados em seres autômatos jamais seriam verdadeiros, visto que não são espontâneos e sim uma imposição arbitrária do ser supremo e soberano(???) do cosmo.


Outro absurdo na noção de que apenas os seres angelicais com livre-arbítrio caíram reside na inescapável conclusão lógica de que seres com autodeterminação só poderiam usar o seu poder de escolha para o mal e não para o bem. É simples provar a pusilanimidade desse postulado. Antes do levantar das cortinas da pré-história quando ocorreu a rebelião angelical no céu, os anjos eram perfeitos. O capítulo 28 do livro de Ezequiel em sua descrição de Lúcifer, diz que o anjo querubim da guarda era um modelo de perfeição, cheio de sabedoria e beleza, inculpável em seus caminhos desde o dia em que foi criado até que foi encontrada maldade nele. Conceder capacidade de escolha a seres perfeitos e sem pecado só resultaria em rebelião? Então não há verdadeiramente livre-arbítrio, posto que livre-arbítrio implica em possibilidade de escolha entre pelo menos duas alternativas opostas e até excludentes entre si. Se um ser dotado de livre-arbítrio só pode se inclinar para o pecado mesmo sendo ele moralmente perfeito, então ele não é verdadeiramente livre para escolher, mesmo sendo um ser perfeito como era Lúcifer antes da rebelião que encheu o seu ser. Em última instância é também um ser autômato às avessas, um robô nas mãos de Deus, pré-programado pelo próprio criador para cometer iniqüidade, investido de um livre-arbítrio que de fato não usufrui por não poder dele fazer uso. Seria um pseudo livre-arbítrio contraditória e falsamente designado de livre-arbítrio.

Essa noção gera outro problema: já que os anjos não possuíam livre-arbítrio, Deus seria o real autor tanto da bondade dos que não caíram como das maldades dos rebelados. Seria, portanto, o verdadeiro culpado por todo ocultismo, bruxaria, possessões, assassínios, roubos e destruições promovidos pelos anjos caídos tornados espíritos imundos ou demônios. Deus seria o autor do mal e conceitualmente falando se confundiria com o próprio diabo uma vez que a realidade de que este veio para matar, roubar e destruir, como o próprio Jesus falou, se aplicaria também a Ele. Com a violência praticamente onipresente na história seria difícil distinguir Deus do diabo já que o primeiro, em seus decretos eternos, teria predeterminado a prática de todas as perversões por seres sem autodeterminação, sejam eles anjos ou mesmo humanos.

Outra assertiva feita durante o debate radiofônico foi a de que os anjos não possuem livre-arbítrio hoje porque se o possuíssem haveria o risco de seres angelicais continuarem caindo em rebelião. Embora a Bíblia não registre detalhes das questões postas, o próprio versículo 6 da epístola de Judas lança luz sobre a questão. Se os anjos rebeldes caíram porque não guardaram a sua posição original de autoridade, conclui-se lógica e facilmente que os que não aderiram às fileiras da rebelião luciferiana, não caíram exatamente porque mantiveram sua posição.

Proposição plausível

Proponho que os anjos sempre tiveram e continuam tendo poder de escolha. Só seres dotados de autodeterminação podem ser moralmente responsabilizados pelos atos que praticam e só seres nessa condição podem amar e adorar o Criador com a espontaneidade que agrada e torna verdadeira qualquer devoção.

Proponho também que seria impossível anjos caírem atualmente porque guradaram o seu principado e se na época da rebelião eles não foram aliciados pelas ofertas sedutoras de poder de Lúcifer, não seria hoje que isso aconteceria, ainda mais sendo sábios e podendo contemplar as conseqüências dos que caíram sendo uma delas o estarem guardados para o juízo e perdição. Creio que esses argumentos filosóficos, não obstante sejam extra-bíblicos, possuem coerência bíblica.

Seriam as noções calvinistas concernentes à condição angelical fatalistas, sem sentido e por isso mesmo risíveis e merecedoras do combate, indiferença ou rejeição? Apenas digo: tenhamos paciência com nossos irmãos predestinalistas e apresentemos a eles opções melhores que as defasadas e precarizadas elucubrações do sistema filosófico agostiniano-calvinista.

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