Philip Schaff
Não podemos deixar este importante
assunto sem examinar o sistema calvinista da predestinação à luz da experiência
cristã, da razão e do ensino da Bíblia.
O Calvinismo, como vimos, começa de um
duplo decreto de predestinação absoluta, que precede a criação, e é o plano
divino da história humana. Este plano inclui os estágios sucessivos da criação
do homem, uma queda e condenação universal da raça, uma redenção e salvação
parcial, e uma reprovação e perdição parcial: tudo para a glória de Deus e para
a demonstração de seus atributos de misericórdia e justiça. A história é
somente a execução do propósito original. Não pode haver nenhuma falha. O
início e o fim, o plano imutável de Deus e o resultado da história do mundo,
devem estar em harmonia.
Devemos lembrar logo no início que
temos que lidar aqui com nada menos do que a solução do problema do mundo, e
devemos abordá-la com reverência e um senso humilde de limitação de nossas
capacidades mentais. Estamos situados, por assim dizer, ante uma montanha cujo
topo está perdido nas nuvens. Muitos que ousaram subir ao cume perderam sua
visão nos ofuscantes montes de neve. Dante, o mais profundo pensador entre os
poetas, considera o mistério da predestinação distante demais dos mortais que
não podem ver “a primeira causa em sua totalidade,” e profunda demais até para
a compreensão dos santos no Paraíso, que desfrutam a visão beatífica, todavia
“não conhecem todos os eleitos,” e estão satisfeitos por “desejar o que quer que
Deus queira.”[1] O próprio Calvino confessa que,
“a predestinação de Deus é um emaranhamento, do qual a mente do homem de forma
alguma consegue desprender-se.”[2]
A única saída do emaranhamento é o fio
de Ariadne do amor de Deus em Cristo, e este é um ainda maior, mas mais santo
mistério, que podemos adorar antes que compreender.
OS FATOS DA EXPERIÊNCIA.
Encontramos em todo lugar neste mundo
os traços de um Deus revelado e de um Deus oculto; revelado o suficiente para
fortalecer nossa fé, oculto o suficiente para testar nossa fé.
Estamos cercados de mistérios. No reino
da natureza vemos os contrastes de luz e trevas, dia e noite, calor e frio,
verão e inverno, vida e morte, vales florescentes e desertos infecundos,
pássaros canoros e serpentes venenosas, animais benéficos e bestas vorazes, a
luta pela existência e a sobrevivência dos mais aptos. Passando para a vida
humana, descobrimos que um homem nasce para a prosperidade, outro para a miséria;
um rei, outro mendigo; um forte e saudável, o outro um paralítico desamparado;
um gênio, o outro um ignorante; um inclinado à virtude, um outro ao vício; um
filho de um santo, o outro de um criminoso; um na escuridão do paganismo, um
outro na luz do Cristianismo. Tanto os melhores quanto os piores homens estão
expostos a acidentes fatais, e nações inteiras com sua prole inocente são
assoladas e dizimadas pela guerra, pestilência e fome.
Quem pode explicar todos estes e mil
outras diferenças e problemas desconcertantes? Eles estão além do controle da
vontade do homem, e devem ser achados na vontade inescrutável de Deus, cujos
caminhos estão além da nossa compreensão.
Aqui, então, está a predestinação, e,
aparentemente, uma dupla predestinação para o bem ou mal, para a alegria ou
miséria.
Pecado e morte são fatos universais que
ninguém em sã consciência pode negar. Eles constituem o problema dos problemas.
E a única solução prática do problema é o fato da redenção. “Onde o pecado
abundou, superabundou a graça; para que, assim como o pecado veio a reinar na
morte, assim também viesse a reinar a graça pela justiça para a vida eterna,
por Jesus Cristo nosso Senhor” (Rm 5.20, 21).
Se a redenção fosse tão universal em
sua operação quanto o pecado, a solução seria mais satisfatória e mais
gloriosa. Mas a redenção é somente em parte revelada neste mundo, e a grande
questão permanece: O que será da imensa maioria dos seres humanos que vivem e
morrem sem Deus e sem esperança neste mundo? Este terrível fato deve ser achado
no eterno conselho de Deus ou na livre agência do homem? Aqui está o ponto onde
o Agostinianismo e o Calvinismo discordam do Pelagianismo, do Semipelagianismo,
do Sinergismo e do Arminianismo.
O sistema calvinista envolve uma
verdade positiva: a eleição para a vida eterna pela graça livre, e a inferência
negativa: a reprovação para a morte eterna pela justiça arbitrária. A primeira
é a força, a última é a fraqueza do sistema. A primeira é praticamente aceita
por todos os crentes verdadeiros; a última sempre foi, e sempre será, rechaçada
pela grande maioria dos cristãos.
A doutrina de uma eleição graciosa é
tão claramente ensinada no Novo Testamento quanto qualquer outra doutrina.
Consulte passagens como Mt 25.34; Jo 6.37, 44, 65; 10.28; 15.16; 17.12; 18.9;
At 13.48; Rm 8.28-39; Gl 1.4; Ef 1.4-11; 2.8-10; 1Ts 1.4; 2Ts 2.13-14; 2Tm 1.9;
1Pe 1.2. A doutrina é confirmada pela experiência. Os cristãos traçam todas as
suas bênçãos temporais e espirituais, suas vidas, saúde, e força, sua
regeneração e conversão, todo bom pensamento e obra à graça imerecida de Deus,
e esperam ser salvos unicamente pelos méritos de Cristo, “pela graça, por meio
da fé,” não pelas suas próprias obras. Quanto mais avançam na vida espiritual,
mais gratos se sentem a Deus, e menos inclinados a reivindicar algum mérito. Os
maiores santos são também os mais humildes. Sua teologia reflete o espírito e
atitude de oração, que se apóia na convicção de que Deus é o livre doador de
todo bem e dom perfeito, e que, sem Deus, não somos nada. Diante do trono da
graça todos os cristãos podem ser chamados de agostinianos e calvinistas.
O grande mérito de Calvino é ter
apresentado esta doutrina da salvação pela livre graça mais vigorosa e
claramente do que qualquer teólogo desde os dias de Agostinho. Ela tem sido o
tema eficaz dos grandes pregadores e escritores calvinistas na Europa e América
até o dia de hoje. Howe, Owen, Baxter, Bunyan, South, Whitefield, Jonathan
Edwards, Robert Hall, Chalmers, Spurgeon, foram calvinistas em seus credos,
embora pertencendo a diferentes denominações, – Congregacional, Presbiteriana,
Episcopal, Batista, – e não tiveram superiores em força e influência no
púlpito. Spurgeon foi o pregador mais popular e eficaz do século dezenove, que
se dirigia de semana a semana a cinco mil ouvintes em seu tabernáculo, e
milhões de leitores através de seus sermões impressos em muitas línguas. Nem
devemos nos esquecer que alguns dos mais devotos católicos romanos foram
agostinianos ou jansenistas.
Por outro lado, ninguém é salvo
mecanicamente ou pela força, mas por meio da fé, gratuitamente, aceitando o dom
de Deus. Isto implica a força contrária de rejeitar o dom. Aceitar não é nenhum
mérito, rejeitar é ingratidão e culpa. Todos os pregadores calvinistas apelam à
responsabilidade do homem. Eles oram como se tudo dependesse de Deus; e no
entanto pregam e agem como se tudo dependesse do homem. E a Igreja é instruída
a enviar o evangelho a toda criatura. Oramos pela salvação de todos os homens,
mas não pela perda de um único ser humano. Cristo intercedeu até mesmo por seus
assassinos na cruz.
Aqui, então, está uma dificuldade
prática. O decreto da reprovação não pode ser feito objeto de oração ou
pregação, e este é um argumento contra ele. A experiência confirma a eleição,
mas repudia a reprovação.
O ARGUMENTO LÓGICO.
O argumento lógico para a reprovação é
que não pode haver nenhum positivo sem um negativo; nenhuma eleição de alguns
sem uma reprovação de outros. Isto é verdadeiro por lógica dedutiva, mas não
por lógica indutiva. Há graus e fases de eleição. Deve haver uma ordem
cronológica na história da salvação. Todos são chamados mais cedo ou mais
tarde; alguns na sexta, outros na nona, outros na décima primeira hora, de
acordo com a providência de Deus. Aqueles que aceitam a chamada e perseveram na
fé estão entre os eleitos (1Pe 1.1; 2.9). Aqueles que a rejeitam se tornam
reprovados por sua própria incredulidade, e contra o desejo e vontade de Deus.
Não há nenhum decreto antecedente de reprovação, mas somente um ato judicial de
reprovação em conseqüência do pecado do homem.
A lógica é uma espada de duas pontas.
Ela pode levar das premissas predestinacionistas à conclusão de que Deus é o
autor do mal, o que o próprio Calvino rejeita e abomina como blasfêmia. Ela
pode também levar ao fatalismo, panteísmo ou universalismo. Devemos parar em
algum lugar em nosso processo de raciocínio, ou sacrificar uma parte da
verdade. A lógica, deve ser lembrado, lida somente com categorias finitas, e
não pode compreender verdade infinita. O Cristianismo não é um problema lógico
ou matemático, e não pode ser reduzido às limitações de um sistema humano. Ele
está acima de qualquer sistema particular e abrange as verdades de todos os
sistemas. Está acima da lógica, todavia não é ilógico; como a revelação está
acima da razão, todavia não contra a razão.
Não podemos imaginar Deus exceto como
um ser onisciente e onipotente, que da eternidade previu e, de alguma forma,
também preordenou todas as coisas que acontecem em seu universo. Ele previu o que
preordenou, e preordenou o que previu; sua presciência e preordenação, sua
inteligência e vontade são coeternas, e devem harmonizar-se. Não há nenhuma
sucessão de tempo, nem antes nem depois no Deus eterno. A queda do primeiro
homem, com seus efeitos sobre todas as futuras gerações, não pode ter sido um
acidente que Deus, como um espectador passivo e neutro, simplesmente permitiu
que acontecesse quando ele podia tão facilmente ter evitado. Ele deve de alguma
forma ter preordenado a queda, como um meio para um fim maior, como uma
condição negativa para o maior bem. Até agora a força do raciocínio, baseado na
crença em um Deus pessoal, vai até o extremo do supralapsarianismo calvinista,
e até mesmo além dele, à própria margem do universalismo. Se abandonarmos a
idéia de um Deus auto-consciente, pessoal, a razão nos forçaria ao fatalismo ou
panteísmo.
Mas há uma lógica da ética assim como
da metafísica. Deus é santo assim como todo-poderoso e onisciente, e por essa
razão não pode ser o autor do pecado. O homem é um ser tanto moral quanto
intelectual, e as afirmações de sua constituição moral são iguais às suas
afirmações de sua constituição intelectual. A consciência é um fator tão
poderoso quanto a razão. O crente mais rígido na soberania divina, se cristão,
não pode se livrar do senso de responsabilidade pessoal, apesar de incapaz de
reconciliar as duas. A harmonia jaz em Deus e na constituição moral do homem.
Elas são os dois lados complementares de uma verdade. Paulo as une em uma
sentença: “Efetuai a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é o que
opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade” (Fp
2.13). O problema, entretanto, chega dentro do alcance da solução possível, se
distinguirmos entre soberania como um poder inerente e o exercício da
soberania. Deus pode limitar o exercício de sua soberania para dar lugar à
livre ação de suas criaturas. É por seu decreto soberano que o homem é livre.
Sem essa auto-limitação ele não poderia exortar os homens ao arrependimento e à
fé. Aqui, novamente, a lógica calvinista deve curvar-se ou partir-se.
Estritamente executada, ela transformaria as exortações de Deus aos pecadores
em uma solene zombaria e cruel ironia.
O ARGUMENTO DA ESCRITURA.
Calvino, embora um dos mais hábeis
lógicos, se preocupou menos com a lógica do que com a Bíblia, e foi sua
obediência à Palavra de Deus que o induziu a aceitar o decretum
horribile contra seu desejo e vontade. Seu julgamento é da maior
importância, pois ele não teve ninguém superior, e dificilmente alguém à
altura, em conhecimento pleno e sistemático da Bíblia e em discernimento
exegético.
E aqui devemos espontaneamente admitir
que um número considerável de passagens, especialmente no Velho Testamento,
favorecem um duplo decreto até o limite do extremo supralapsarianismo; sim,
eles vão além do sistema calvinista, e parecem fazer do próprio Deus o autor do
pecado e do mal. Veja Êx 4.21; 7.13 (repetidamente citado sobre o endurecimento
do coração do Faraó por Deus); Is 6.9, 10; 44.18; Jr 6.21; Am 3.6 (“Sucederá
qualquer mal à cidade, sem que o Senhor o tenha feito?”); Pv 16.4; Mt 11.25;
13.14, 15; Jo 12.40; Rm 9.10-23; 11.7, 8; 1Co 14.3; 2Ts 2.11; 1Pe 2.8; Jd 4
(“que já desde há muito estavam destinados para este juízo”).[3]
A defesa da reprovação é o nono
capítulo de Romanos. Não foi acidental que Calvino elaborou e publicou a
segunda edição de suas Institutas simultaneamente com seu
Comentário sobre Romanos, em Estrasburgo, em 1539.
Há especialmente três passagens em Rm
9, que em seu sentido literal favorecem o Calvinismo extremado, e são assim
explicadas por alguns dos mais rigorosos comentaristas gramaticais dos tempos
modernos (como Meyer e Weiss).
(a) 9.13: “Amei a Jacó, e
aborreci a Esaú,” citado de Ml 1.2, 3. Esta passagem, se a tomarmos num sentido
literal ou antropopático, não tem nenhuma referência com o destino eterno de Jacó
e Esaú, mas com a posição representativa na história da teocracia. Isto remove
a principal dificuldade. Esaú recebeu uma bênção temporal de seu pai (Gn 27.39,
40), e se comportou gentil e generosamente com seu irmão (33.4); ele
provavelmente se arrependeu da estupidez de sua juventude de vender sua
primogenitura,[4] e pode estar entre os salvos,
assim como Adão e Eva – os primeiros entre os perdidos e os primeiros
entre os salvos.
Além disso, o significado rígido de um
ódio positivo parece impossível na natureza do caso, visto que contradiria tudo
que conhecemos da Bíblia dos atributos de Deus. Um Deus de amor, que nos
comanda a amar todos os homens, até os nossos inimigos, não pode odiar uma
criança antes de seu nascimento, ou qualquer de suas criaturas feitas à sua
própria imagem. “Pode uma mulher esquecer-se de seu filho de peito,” diz o
Senhor, “de maneira que não se compadeça do filho do seu ventre? Mas ainda que
esta se esquecesse, eu, todavia, não me esquecerei de ti” (Is 49.15). Esta é a
concepção do profeta das afáveis misericórdias de Deus. Quanto mais deve ser a
concepção do Novo Testamento? A palavra ódio deve, por essa
razão, ser entendida como uma expressão hebraística forte para amar menos ou
recusar; como em Gn 29.31, onde o texto original diz, “Léia era odiada” por
Jacó, isto é, amada menos do que Raquel (comp. v. 30). Quando nosso Salvador
diz, Lc 14.26: “Se alguém vier a mim, e não odiar pai e mãe, a
mulher e filhos, a irmãos e irmãs, e ainda também à própria vida, não pode ser
meu discípulo,” ele não quer dizer que seus discípulos devem violar o quinto
mandamento, e agir de forma contrária à sua orientação: “Amai aos vossos
inimigos, e orai pelos que vos perseguem” (Mt 5.44), mas simplesmente que
devemos preferir a ele acima de tudo, até da própria vida, e devemos sacrificar
o que quer que venha em conflito com ele. Este significado é confirmado pela
passagem paralela, Mt 10.37: “Quem ama o pai ou a mãe mais
do que a mim não é digno de mim”
(b) Rm 9.17. Paulo traça o
endurecimento do coração do Faraó à intervenção de Deus, e até então faz Deus o
responsável pelo pecado. Mas este era um ato judicial de punir o pecado com
pecado; pois Faraó tinha primeiro endurecido seu próprio coração (Êx 8.15, 32;
9.34). Além disso, esta passagem não tem nenhuma referência com o destino
futuro do Faraó mais do que a passagem sobre Esaú, mas ambas se referem aos
seus lugares na história de Israel.
(c) Em 9.22 e 23, o apóstolo
fala de “vasos da ira, preparados para a perdição,” e “vasos de
misericórdia, que (Deus) preparou para a glória.” Mas a diferença
dos verbos, e as diferenças entre a passiva (ou média) na primeira frase e a
ativa na segunda é mais significante, e mostra que Deus não tem nenhuma
interferência direta na destruição dos vasos da ira, que é devido à sua
auto-destruição; o particípio perfeito denota o resultado de um processo gradual
e um estado de maturidade para a destruição, mas não um propósito divino.
Calvino é um exegeta bom demais para negligenciar esta diferença, e
verdadeiramente admite sua força, embora tente enfraquecê-la.
“Eles observam,” ele diz de seus
oponentes, “que não é dito sem propósito, que os vasos da ira são preparados
para a destruição, mas que Deus preparou os vasos de misericórdia; visto que
por este modo de expressão, Paulo atribui a Deus o louvor da salvação, e lança
a culpa da perdição naqueles que por suas escolhas a obtêm para si mesmos. Mas
embora concorde com eles que Paulo suaviza a asperidade da primeira
frase pela diferença de fraseologia; todavia não é consistente transferir a
preparação para a destruição a qualquer outra coisa que não o secreto conselho
de Deus, que também é afirmado bem antes no contexto, ‘que Deus levantou a
Faraó, e quem ele quer ele endurece.’ De onde segue que a causa do
endurecimento é o conselho secreto de Deus. Por essa razão, sustento, o que é
observado por Agostinho, que quando Deus transforma lobos em ovelhas, ele os
renova pela mais poderosa graça para conquistar sua obstinação; e por essa
razão os obstinados não são convertidos, pois Deus exerce, não aquela graça
mais poderosa, da qual não está destituído se escolhesse mostrá-la.”[5]
O ENSINO DE PAULO DA EXTENSÃO DA
REDENÇÃO.
Qualquer que seja a opinião que possamos
tirar destas difíceis passagens, devemos lembrar que o nono capítulo de Romanos
é somente uma parte da filosofia da história de Paulo, revelada nos capítulos
9-11. Enquanto o nono capítulo estabelece a soberania divina, o décimo capítulo
afirma a responsabilidade humana, e o décimo primeiro avança para a solução
futura do misterioso problema, a saber, a conversão da plenitude dos gentios e
a salvação de todo o Israel (11.25). E ele encerra toda a discussão com a
gloriosa sentença: “Deus encerrou a todos debaixo da
desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos” (32).
Esta é a chave para o entendimento, não apenas desta seção, mas de toda a
epístola aos Romanos.[6]
E isto está em harmonia com todo o
espírito e objetivo desta epístola. É mais fácil fazê-la provar um sistema de
universalismo condicional do que um sistema de particularismo dualístico. O
próprio tema, 1.16, declara que o evangelho é o poder de Deus para salvação,
não de uma classe particular, mas de “todo aquele” que crê. Ao traçar um
paralelo entre o primeiro e o segundo Adão (5.12-21), ele representa o efeito
do último como igual em extensão, e maior em intensidade, do que o efeito do
primeiro; enquanto no sistema calvinista deveria ser menos. Não temos direito
de limitar “os muitos” e o “todos” em uma frase, e a tomarmos literalmente na
outra. “Porque, se pela ofensa de um só [Adão], a morte veio a reinar por esse,
muito mais os que recebem a abundância da graça, e do dom da justiça, reinarão
em vida por um só, Jesus Cristo. Portanto, assim como por uma só ofensa veio o
juízo sobre todos os homens para condenação, assim
também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os
homens para justificação e vida. Porque, assim como pela desobediência
de um só homem muitos [isto é, todos] foram constituídos pecadores,
assim também pela obediência de um muitos [todos] serão
constituídos justos” (5.17-19).[7] O mesmo paralelo, sem qualquer
restrição, é mais brevemente expressado na passagem (1Co 15.22): “Como em
Adão todos morrem, do mesmo modo em Cristo todosserão
vivificados;” e de uma forma diferente em Rm 11.32 e Gl 3.22, já citadas.
Estas passagens contêm, resumidamente,
a teodicéia de Paulo. Elas dissipam a obscuridade do nono capítulo de Romanos.
Elas excluem todas as limitações do plano e intenção de Deus a uma classe
particular; elas não ensinam, de fato, que todos os homens serão na verdade
salvos – pois muitos rejeitam a oferta divina, e morrem na impenitência, – mas
que Deus sinceramente deseja e verdadeiramente provê salvação
para todos. Quem quer que seja salvo, é salvo pela graça; quem quer que seja
perdido, é perdido por sua própria culpa da incredulidade.
A OFERTA DA SALVAÇÃO.
Ainda resta, é verdade, a grande
dificuldade que a oferta de salvação é limitada neste mundo, até onde sabemos,
a uma parte da raça humana, e que a grande maioria passa por este mundo sem
qualquer conhecimento do Cristo histórico.
Mas Deus deu a todo homem a luz da
razão e da consciência (Rm 1.19; 2.14, 15). O Logos Divino “alumia a todo
homem” que vem ao mundo (Jo 1.9). Deus nunca deixou de “dar testemunho” de si
mesmo (At 14.17). Ele lida com suas criaturas de acordo com a medida de sua
capacidade e oportunidade, se têm um, cinco ou dez talentos (Mt 25.15 sqq.).
Ele “não faz acepção de pessoas; mas que lhe é aceitável aquele que, em
qualquer nação, o teme e pratica o que é justo” (At 10.35).
Não podemos, então, nutrir ao menos uma
esperança generosa, se não uma crença firme, que um Deus de infinito amor e
justiça irá receber em seu reino celestial todos aqueles que morrem
inocentemente ignorantes da revelação cristã, mas em estado de boa vontade ou
disposição para o evangelho, de modo que eles aceitariam agradecidamente se ele
lhes fosse oferecido? Cornélio estava nessa condição antes de Pedro entrar em
sua casa, e ele representa uma multidão que ninguém pode enumerar. Não podemos
saber e medir as operações secretas do Espírito de Deus, que trabalha “quando,
onde, e como quer.”
Certamente, aqui está um ponto onde o
rigor da velha ortodoxia, se católica romana, ou luterana, ou calvinista, deve
ser moderada. E o sistema calvinista admite uma expansão mais facilmente do que
o tipo de ortodoxia eclesiástica e sacramental.
O AMOR GERAL DE DEUS POR TODOS OS
HOMENS.
Esta doutrina de uma vontade e provisão
divina de uma salvação universal, sob a única condição de fé, é ensinada em
muitas passagens que não admitem nenhuma outra interpretação, e que devem, por
essa razão, decidir toda esta questão. Pois é uma regra estabelecida em
hermenêutica que passagens obscuras devem ser explicadas por passagens claras,
e não vice versa. Tais passagens são as seguintes: –
“Porque não tenho prazer na morte de
ninguém, diz o Senhor Deus; convertei-vos, pois, e vivei” (Ez 18.32, 23;
33.11). “E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a
mim” (Jo 12.32). “Porque Deus amou o mundo” (isto é, toda a
humanidade) “de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo
aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16).
“Deus nosso Salvador deseja que todos os homens sejam
salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2.4).[8] “Porque a graça de Deus se
manifestou, trazendo salvação a todos os homens” (Tt 2.11). “O
Senhor é longânimo para convosco, não querendo que ninguém se
perca, senão que todos venham a arrepender-se” (2Pe 3.9).[9] “Jesus Cristo é a propiciação
pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos (os
pecados de) de todo o mundo” (1Jo 2.2). É impossível declarar a
doutrina de uma expiação universal mais claramente em tão poucas palavras.[10]
A estas passagens devem ser
acrescentadas as exortações divinas ao arrependimento, ao lamento de Cristo
sobre os habitantes de Jerusalém que “não quiseram” vir a ele (Mt 23.37). Estas
exortações são insinceras ou sem sentido, se Deus não quer que todos os homens
sejam salvos, e se os homens não têm a capacidade de obedecer ou desobedecer a
voz. O mesmo está implícito no comando de Cristo para pregar o evangelho a toda
a criatura (Mc 16.15), e para fazer discípulos de todas as nações (Mt 28.19).
É impossível restringir estas passagens
a uma classe particular sem fazer violência à gramática e ao contexto.
A única forma de escape é a distinção
entre uma vontade revelada de Deus, que declara sua disposição
para salvar todos os homens, e uma vontade secreta de
Deus, que pretende salvar somente alguns homens.[11] Agostinho e Lutero fizeram esta
distinção. Calvino a usa para explicar 2Pe 3.9, e aquelas passagens do Velho
Testamento que atribuem arrependimento e mudanças ao Deus imutável.
Mas esta distinção destrói o sistema
que se pretende defender. Uma contradição entre intenção e expressão é fatal à
veracidade, que é a fundação da moralidade humana, e deve ser um atributo
essencial da Divindade. Um homem que diz o inverso do que pretende é chamado,
em linguagem clara, de hipócrita e mentiroso. Não ajuda a questão quando
Calvino diz, reiteradamente, que não há duas vontades em Deus, mas somente duas
formas de falar, adaptadas à nossa fraqueza. Nem remove a dificuldade quando
ele nos exorta a confiar na vontade revelada de Deus antes que meditar em sua
vontade secreta.
A maior, a mais profunda, a mais
confortante expressão na Bíblia é a expressão, “Deus é amor,” e o maior fato na
história do mundo é a manifestação daquele amor na pessoa e obra de Cristo.
Essa expressão e este fato são a soma e substância do evangelho, e a única
sólida fundação da teologia cristã. A soberania de Deus é reconhecida por
judeus e muçulmanos assim como pelos cristãos, mas o amor de Deus é revelado
somente na religião cristã. É a essência íntima de Deus, e a chave para todos
os seus caminhos e obras. É a verdade central que irradia luz sobre todas as
outras verdades.
Fonte: History
of the Christian Church, Volume 7, Capítulo XIV, § 114
Tradução: Paulo
Cesar Antunes
[1]Paradiso, XX. 130-138: -
“O predestinazion, quanto rimota
È la radice tua da quegli aspetti
Che la prima
cagion non veggion tota!
“E voi, mortali, tenetevi stretti
A giudicar; chè noi, che Dio vedemo,
Non conosciamo ancor tutti gli eletti:
“Ed ènne dolce
così fatto scemo,
Perchè il ben
nostro in questo ben s’affina,
Che quel che vuole Dio, e noi volemo.”
[2] Comentários sobre Rm 9.14: “Est
prædestinatio Dei vere labyrinthus, unde hominis ingenium nullo modo se
explicare queat.”
[3] A última passagem é
freqüentemente citada em favor de um decreto da reprovação, mas o verbo progegrammevnoi está
incorretamente traduzido como “ordenados” na E. V. Progravfw significa escrever
antes, e se refere aos escritos anteriores, a saber, as Escrituras do Velho
Testamento. Calvino corretamente traduz “praescripti in hoc judicium,”
mas a refere, metaforicamente, ao livro do conselho divino “aeternum Dei
consilium liber vocatur.”
[4]Isto está implícito em Hb 12.17, se
aplicarmos metanoia ao arrependimento posterior de Esaú
(Calvin, Bleek), ou a uma mudança de opinião em Isaque (Beza, Weiss).
[5]Inst. III. cap. XXII. 1. Em seu
Comentário sobre Rm 9.22, 23, ele ignora esta distinção e explica kathrtismevna,
“abandonados e apontados para destruição, criados e formados para este fim” (devota
et destinata exitio: sunt enim vasa iræ, id est in hoc facta et formata, ut
documenta sint vindictæ et furoris Dei). Esta é a exposição
supralapsariana extrema. Mas outros exegetas reformados completamente
reconhecem a diferença de fraseologia. Foi pressionado pelos membros da
Assembléia de Westminster que estavam de acordo com o universalismo hipotético
da escola de Saumur de Cameron e Amyrauld. “Os não-eleitos,” disse o Dr.
Arrowsmith, “são ditos ser preparados para a destruição que seus pecados
trouxeram sobre eles, mas não por Deus.”Veja Mitchell, Minutes of the
Westminster Assembly, pp. 152 sqq.; Schaff, Creeds, I. 770 sq.
[6] “Das
ganze Summarium und der herrliche Schlussstein des ganzen bisherigen
Brieftheils.” Weiss na 6a. ed. de Meyer sobre Romanos (p. 555). Godet: “C’est
ici comme le point final appose à tout ce qui précede; ce dernier mot rend
compte de tout le plan de Dieu, dont les phases principales viennent d’être
esquissées.” A
frase “judeus e gentios” não ensina, de fato, a aceitação forçada da
misericórdia por todos, mas, em qualquer caso, a universalidade do propósito e
intenção divinos. Meyer vê nesta passagem um argumento exegético conclusivo
contra um decretum reprobationis.
[7] Infelizmente a A. V. suprime a
força do paralelo no quinto capítulo de Romanos ao negligenciar o artigo
definido antes de polloiv. “Os muitos” do original é oposto ao
“um,” e é equivalente ao “todos;” enquanto “muitos” seria oposto a “poucos.” A
Revised Version de 1881 corrige estes erros.
[8] Calvino explica “todos os homens”
como sendo homens de todas as classes e condições (“de hominum generibus,
non singulis personis”). Veja seu Comentário sobre 1Tm 2.4, e seu sermão
sobre a passagem. Mas o apóstolo enfatiza “todos os homens” com referência à
oração por “todos os homens,” que ele comanda no versículo 1, e que não pode
ser limitada.
[9] Calvino arbitrariamente explica
esta passagem da “voluntas Dei quae nobis in evangelio patefit,” mas não
“de arcano Dei consilio quo destinati sunt reprobi in suum exitium.”
[10] Calvino entende “totus mundus”
nesta passagem como sendo “tota ecclesia!” Isto é tão impossível quanto
a restrição do “mundo,” Jo 3.16, aos “eleitos.” Ele menciona, entretanto,
também uma melhor explicação, que Cristo morreu “sufficienter pro toto
mundo, sed pro electis tantum efficaciter.”
[11] Vários termos para a
distinção: voluntas revelata e voluntas arcana; voluntas
signi e voluntas beneplaciti; voluntas universalis e voluntas
specialis;verbum externum et verbum internum. O texto-prova
freqüentemente citado, Dt 29.29, ensina uma distinção, mas não uma contradição,
entre as coisas secretas e as coisas reveladas de Deus.
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